RECORDAÇÃO
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de ti
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
- Paulo Leminski
Nosso tempo é rápido e vário.
A memória assim perde sua função e ficamos com a fugacidade.
Tudo passa. E tudo esquecemos.
Em entrevista recente, Cleyde Yaconis fala que é condizente com
o momento que vivemos casais não durarem muito. Ela diz, atônita, que hoje tudo é feito para durar apenas dois anos: nossos carros, eletrodomésticos, casamentos, amigos, sonhos, gostos, ideologias.
O que nos resta? Será que ainda temos o charme de Leminski?
Ou ficamos apenas com o implacável presente?
Onde nada pára, onde nada remanesce.
tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada pára
para ser ventura
- Paulo Leminski
Disse Ardego Soficci que "o homem mais feliz é aquele que sabe viver
na contingência, como as flores". Talvez não nos reste outra saída mesmo.
nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo à frente
- Paulo Leminski
Todos achamos que éramos importantes – e de repente todos éramos importantes.
Não esperávamos por isso – e o mundo ficou pequeno.
O que fazer então com nossa insignificante relevância?
Para que dizer sabedorias aos sábios?
Como articular o inconstante?
Como calar se a dor grita?
"Nada é permanente, exceto a mudança", mantra Heráclito. Claro.
tudo dança
hospedado numa casa
em mudança
- Paulo Leminski
Então diz Cecília que canta "porque o momento existe",
que não é alegre nem é triste, apenas poeta.
E Wislawa Szymboska prefere
"o absurdo de escrever poesia ao absurdo de não escrever poesia".
E Laforgue:
"Que a morte só nos tenha mortos de tanto bebermos a nós mesmos".
É aí onde estou.
Não sei se restará sequer o charme
depois mim,
de ti,
de nós,
de tudo,
mas não cesso – e me surpreendo com essa vontade
que temos de permanecer no descontínuo de existir.
Mesmo com a certeza de uma identidade transitória
que pode jamais preencher o agora.
Efêmera enquanto dure.
- AR (2005)